Pra começo de conversa:
"Quando guri, eu tinha de me calar à mesa:
só as pessoas grandes falavam.
... agora, depois de adulto, tenho de ficar
calado para as crianças falarem."
Mario Quintana
Em um processo pouco ortodoxo , a professora Cláudia Santos do Colégio Metodista Americano, em Porto Alegre, permitiu que as crianças da turma de 4º ano do Ensino Fundamental I desenvolvessem e aperfeiçoassem suas habilidades leitoras e escritoras, naquilo que, hoje, os educadores denominam de letramento.
O documentário Pequenos tormentos da vida é um relato das experiências pedagógicas da professora Cláudia que aceitou alguns desafios:
Como trabalhar com crianças "passarinhos" que desconhecem o modo de locomoção "caminhar", adoram pular, correr, saltar e só se movimentam às pressas?
Como fazer as crianças gostarem e descobrirem o sentido e a magia das palavras escalafobéticas?
Como fazer com que elas se aproximem do gênero textual poema, a ponto de desafiarem umas às outras para externar seus sentimentos a partir de leitura de poemas?
Durante as aulas da professora Cláudia, a turma do 4º ano de modo bastante lúdico e, principalmente, criativo e interativo, descobriu o universo da poesia de Mário Quintana, conheceu aspectos de sua biografia e produção literária.
Assistir a este documentário para além de conhecer uma bem sucedida experiência pedagógica é também um exercício aos espectadores que permite sentirem a vida que pulsa em uma sala de aula, quando esta se traduz em um ambiente no qual as crianças têm espaço para refletir, discordar, descobrir, experimentar.
A sala da professora Cláudia tem de tudo: choro, riso, manifestações de apoio e protestos, só não existe o silêncio apático. Lá a vida pulsa como na poesia de Quintana.
2. Antes e depois da seção de cinema
O cenário é uma escola gaúcha da rede privada, particularmente a sala de aula da professora Cláudia os principais protagonistas são seus alunos e a professora "maluquinha", na melhor acepção de Ziraldo, o enredo é o mergulho infantil na rica produção poética de Quintana. Essa é a mistura para que os expectadores do documentário Pequenos tormentos da vida apropriem-se de uma experiência bem sucedida em educação.
Pequenos tormentos da vida
"De cada lado da sala de aula, pelas janelas altas, o azul convida os meninos, as nuvens desenrolam-se, lentas, como quem vai inventando preguiçosamente uma história sem fim... Sem fim é a aula: e nada acontece, nada... Bocejos e moscas. Se ao menos, pensa Lili, se ao menos um avião entrasse por uma janela e saísse pela outra!
(QUINTANA, Mário. Lili inventa o mundo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997).
Este poema em forma de prosa é uma espécie de manifesto do diretor sobre a proposta de seu documentário. Como Mário Quintana, que se aproximou do universo infantil sem idiotizá-lo ou diminuí-lo em relação ao mundo dos adultos, Gustavo Spolidoro ao apresentar, nas primeiras cenas do documentário, crianças sonolentas, bocejando e lendo o poema de Quintana (que dá o título ao seu documentário), põe-se ao lado do poeta e das crianças contra a monotonia da sala de aula e a favor de que esse ambiente torne-se algo interessante.
Não haverá uma única criança que não compreenda a Lili de Quintana e que não estabeleça empatia imediata com as crianças da sala da professora Cláudia, pois todas as crianças quando lhes é permitido serem crianças, falam ao mesmo tempo sempre saem correndo na hora do recreio para brincar riem, discordam, concordam, choram, gostam e desgostam dos amigos e desejam experienciar boas surpresas.
Ao assistirmos o documentário de Spolidoro percebemos o quanto Quintana tinha razão ao afirmar:
"Eu me lembro que eu escrevi um livro sobre criança que eu escrevi uma palavra esquisita lá. E eu creio que alguém falou que essa palavra é invulgar. É uma palavra culta. Não, não é uma palavra culta. É uma palavra engraçada. Porque as crianças gostam de palavras escalafobéticas."
(Depoimento de Mário Quintana, reproduzido no documentário Pequenos Tormentos da Vida)
A questão, portanto, não reside em apresentar às crianças textos que de tão facilitados tornam-se incapazes de fazê-las crescerem e se desenvolverem, porque subestimam sua curiosidade diante do mundo.
As crianças necessitam ter acesso a textos ricos que possam ampliar seu vocabulário, que as ajudem a "ler nas entrelinhas", que as capacitem a serem "leitoras do mundo". Se nós não criarmos medo em relação às descobertas delas, elas não se intimidam com palavras desconhecidas.
Às crianças da sala da professora Cláudia no meio do furacão de atitudes e sentimentos que é a infância bem vivida foi permitida a descoberta da poesia de Quintana e nesse processo elas desenvolveram suas habilidades leitoras e escritoras.
A professora Cláudia realiza bons projetos que incorporam bons textos literários estimulando seus alunos a apreciarem a poesia em todas as suas dimensões. Atentem para este diálogo diante da proposta dessa professora que se aproveita do termo "engraçado" - escalafobético - para criar ruídos e ampliar a curiosidade das crianças sobre o universo da poesia de Quintana e, ao mesmo tempo, desenvolver e ampliar suas habilidades leitoras:
"Sabe o que é escalafobético, Carol?
Vamos procurar no dicionário?
Escalafobético, tu sabe o que é?
Não.
Achei!!!
Tu encontrou???
Es-ca-la-fo-bé-ti-co. O que que tá escrito aqui?
Desajeitado, esquisito...
Quatro: procurar palavras escalafobéticas nos poemas de Mario Quintana.
Escalafobético!
Ímpar!
Par!
Venci! Tu é um escalafobético!
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17.
Tu é o escalafobético!
Póoooooooo!!!
Escalafobético, o vencedor dos escalafobéticos!
Eu não sou escalafobético!
Roberto, diga uma palavra escalafobética.
Entrepara.
Felipe.
Antológicos.
Mateus.
Nuança.
Eu achei... inatingível?!
Matheus!
Quintanares.
Raul!
Cogitabundo.
Eu achei cogitação e cogitar, mas não cogitabundo.
Eu sei qual é o significado de cogitabundo.
Natália, fala.
Profundamente pensativo.
Isso!
(Trechos do diálogo do documentário Pequenos tormentos da vida)
Nas diferentes situações gravadas dentro e fora da sala de aula o diretor de Pequenos tormentos da vida faz-nos um convite para refletirmos sobre a vida que pulsa nas crianças, na poesia de Quintana e nas experiências de uma professora que tem bastante segurança em relação aos seus objetivos pedagógicos.
Os professores ao assistirem o documentário verão nesta turma de 4º ano comportamento, expressões e desejos de vários de seus alunos e poderão se inspirar no projeto desenvolvido pela professora Cláudia para trazerem, por meio da boa poesia, mais cor, sabor, sons e sentimentos para o espaço da sala de aula.
As crianças ao assistirem Pequenos tormentos da vida constatarão que alguém resolveu olhar o mundo aproximando-se da perspectiva infantil, escutando o que elas têm a dizer sobre seus medos, sobre o que acham interessante, o que consideram chato. Elas perceberão que o mundo adulto é capaz de descobrir que as crianças sabem fazer poesia o tempo todo, quando há espaço para expressarem o que sentem e como vêem o mundo, especialmente na companhia do garoto, maroto Quintana.
3. E a sala de aula se transforma em sarau e oficinas de múltiplas linguagens
"Trabalhar a poesia em sala de aula é fundamental, pois o contato com o texto poético instrumentaliza a criança a "ler entrelinhas", ou seja, preencher lacunas, capacitando-a a interpretação.
A poesia trabalhada em sala de aula pode ser o ponto de partida à admiração, ou seja, o ato da criança abrir-se ao desconhecido e "ler" o mundo através do prazer fantástico das imagens, construindo seu imaginário, acionando-o e modificando-o e, assim, reconhecendo-se como ser pensante."
(Clarice Braatz Schmidt e Rosana Ferreira Terra. "Poesia infantil na sala de aula", 2003).
O trabalho cuidadoso da professora Cláudia com a poesia de Quintana mostra-nos o quanto ela tem consciência e controle do projeto que desenvolve.
O diálogo proposto de verificação de leitura e compreensão para o poema "Pequenos tormentos da vida" abre espaço para as crianças se expressarem em relação à grandeza dos "tormentos" que as afligem.
Vemos as crianças falarem de suas relações com as práticas escolares e com as disciplinas e vemos várias outras discordarem ou concordarem com os tormentos apresentados pelos colegas. Vemos também elas se expressarem a respeito de suas relações com os irmãos mais novos e/ou mais velhos etc. Desse modo, a poesia além de ser compreendida, interpretada e apreendida pelas crianças, oferece a elas a possibilidade de expressarem seus próprios sentimentos.
As crianças se envolvem tanto com o projeto que ao concordarem ou discordarem das impressões dos colegas sobre a poesia de Quintana acionam informações que já dominam sobre a vida do poeta: "A Victoria quer ser igual ao Mario Quintana que não gostava de matemática".
Em vários momentos do documentário também percebemos como as crianças, empolgadas pelo universo da poesia de Quintana, aceitam desafios e fazem várias atividades úteis ao aprendizado, mas comumente vistas como "chatas" por elas: pesquisa em dicionários cópias produção de textos informativos.
Há uma cena muito interessante no curta de Spolidoro na qual as crianças com bastante autonomia recorrem à consulta ao dicionário para descobrir o significado do termo "ossaria" encontrado no poema Haikai:
"Em meio da ossaria
Uma caveira piscava-me...
Havia um vaga-lume dentro dela."
(QUINTANA, Mario. A vaca e o Hipogrifo, 1977).
No diálogo das crianças, podemos verificar, inclusive, os diferentes níveis de competência leitora e como é importante que esses alunos estabeleçam trocas entre si:
""Osaria"?
Que que é "osaria"?
Não sei.
Deixa eu ver.
A, b, c, d, e, f, g, h, i, j, k, l, m, n, o!
É com dois esses!
Aqui, achei!"
(Trechos do diálogo do documentário Pequenos tormentos da infância).
Nas cenas que mostram o momento em que os alunos da professora Cláudia estão produzindo a biografia de Quintana, podemos vê-las discutindo nos grupos quais informações relevantes devem conter esse tipo de produção textual:
"Tá gente, que que a gente vai escrever afinal de contas?
Ai, já sei! 1906, que foi quando ele nasceu!
Ai, isso todo mundo sabe!
Eu descobri que ele morava no Majestic.
Isso eu já sabia.
Não, ele morava dentro dele mesmo!
Eu descobri que ele morava num hotel!
Ai, quem não sabia?!!!
Eu não sabia que o Mario Quintana
Viajou pro Rio de Janeiro e conheceu a Cecília Meirelles.
Ela é namorada do Mario.
Nada a ver, ele só escondia o amor por ela!
Eles só se conheceram!
É!
E o Mario gostava dela, mas ela já era casada.
É. E teve sete filhos.
Cresceu sete vezes a barriga ou teve gêmeos?
Deve ter tido gêmeos duas vezes
E depois um sozinho!
Daí dá cinco!
Não, três...
Não, dois... dois gêmeos, dois...
Ela teve três vezes e dois gêmeos...
É... então dá seis e mais um dá sete!
Pode ser dois trigêmeos, se já existia os trigêmeos...
Bah...."
(Trechos do diálogo das crianças no documentário Pequenos tormentos da infância)
Há qualidade na discussão das crianças: várias delas dominam uma série de informações da vida do autor e chegam à sofisticação de selecionarem entre a gama de dados que possuem quais devem fazer parte ou não do texto informativo que estão redigindo. Outras brincam com os dados que possuem e criam interpretações próprias sobre eles, como na contabilidade das supostas gestações de Cecília Meireles.
No documentário também percebemos como a professora faz uso de outras linguagens para que as crianças se expressem e reapresentem o que aprenderam para além da oralidade e escrita, como na proposta da elaboração de desenhos para ilustrar os pequenos "tormentos" da turma.
Assim, ao longo do documentário é possível observar como em um ambiente que à primeira vista parece desorganizado, ocorre exatamente o contrário: as crianças sonolentas das primeiras horas da manhã são desafiadas o tempo todo pela mediação consciente da professora Cláudia e aprendem e se desenvolvem emocional e cognitivamente.
Elas desenvolvem habilidades e procedimentos importantes para ampliar sua competência leitora sem, contudo, burocratizar a aprendizagem, pois encontram espaço para o dissenso, para a criação, para falar sobre o que estão sentindo e sobre suas percepções de modo bastante crítico e ativo.
Embora, literalmente, corram o tempo todo, quando são convocadas a ter responsabilidades aderem de bom grado às solicitações .
Percebemos que quando os professores têm clareza dos objetivos que desejam alcançar com os projetos que desenvolvem e encontram um mínimo de infra-estrutura para executá-los (no caso, alguns livros, a visita à Casa de Cultura Mário Quintana) os resultados alcançados são bastante positivos. Ao longo do curta, Spolidoro documenta várias situações que exemplificam isso: quando vemos não apenas a autonomia crescente das crianças nas tarefas escolares, em seus comentários e suas trocas, mas, principalmente, quando o tema do estudo ocupa, inclusive, o horário do parque .
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Ler e apreciar o gênero textual poemas
Apreciar a produção de Mário Quintana
Ler, conhecer e apreciar a produção da poesia local, seguindo os passos da experiência de uma turma de 4º ano
Desenvolver o respeito e a valorização de expressões literárias da cultura brasileira.
4. Inspirando-se no trabalho da professora Cláudia: leitura de poemas, uso de outras linguagens e empréstimos poéticos
A experiência da professora Cláudia pode ser reproduzida com a sua turma, tanto para que as crianças tenham acesso à boa poesia de Mário Quintana como à de outros bons poetas que escreveram para o universo infantil.
Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Fagundes Varela, Vicente de Carvalho, Solano Trindade, Luís Guimarães Júnior, Juvenal Galeano, o poeta português Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles, José Paulo Pais, Olavo Bilac, Arnaldo Antunes, Vinícius de Morais, Manuel de Barros e tantos outros bons poetas também escreveram poesias para crianças e ousaram partilhar com elas o imaginário infantil.
Eles produziram poemas ricos, repletos de imagens encantadoras, com muita qualidade artística e, ao escrever para o público infantil, não cederam à simplificação ou moralidades, mas apostaram ora no humor, ora no ritmo, fazendo uso de imagens fantásticas que são familiares às crianças, acreditando que elas são capazes de apreciar a boa poesia.
Você pode estender o universo da produção poética aos poetas locais (antigos ou modernos). Entre os da atualidade há vários espalhados nos municípios brasileiros que embora produzam boa poesia não encontram espaço para a publicação impressa de sua produção. Hoje, a internet proporciona-nos o acesso a inúmeros sites de poesia e páginas pessoais de bons poetas (consulte algumas sugestões no item 5. Para saber mais).
O importante é que a poesia não seja pretexto, mas faça parte do contexto da aprendizagem, ou seja, ler, conhecer e apreciar a boa poesia deve ser parte importante dos objetivos do projeto.
A poesia pode ser ponto de partida também para discutir conceitos históricos, geográficos, noções de pertencimento, identidade. Vejamos dois exemplos de poetas que dedicaram poemas às suas cidades natais.
O primeiro é Ribeiro Couto , dele selecionei duas partes do poema Santos:
SANTOS
Nasci junto do porto, ouvindo o barulho dos embarques
Os pesados carretões de café
Sacudiam as ruas, faziam tremer o meu berço.
Cresci junto do porto, vendo a azáfama dos embarques.
O apito triste dos cargueiros que partiam
Deixava longas ressonâncias na minha rua.
Brinquei de pegador entre vagões das docas,
Os grãos de café, perdidos no lajedo,
Eram pedrinhas que eu atirava noutros meninos.
As grades de ferro dos armazéns, fechados à noite,
Faziam sonhar (tantas mercadorias!)
E me ensinavam a poesia do comércio.
Sou bem teu filho, ó, cidade marítima,
Tenho no sangue o instinto da partida,
O amor dos estrangeiros e das nações,
Ó, não me esqueças nunca, ó, cidade marítima,
Que eu te trago comigo por todos os climas
E o cheiro do café me dá tua presença.
(...)
Sobre a cidade a tarde cai de manso.
Começam a acender-se luzes mortiças
Nos longos mastros dos transatlânticos ancorados.
Como é longo o cais envolvendo a cidade inteira
Com os chatos armazéns e os guindastes em fila!
Como é longo o cais junto às águas oleosas!
Presos à amurada baloiçam botes vazios.
Vêm conversas confusas de marinheiros
Dentre vagões atulhados de carvão de pedra.
Nossa Senhora do Monte Serrat protege o comércio.
A igrejinha branca lá está, no alto do morro,
Abençoando a fadiga dos homens suarentos.
Junto a estas águas oleosas nasci.
Nasci para sonhar o bem difícil das viagens,
O encanto triste dos amanhãs do exílio.
O apito imenso das sereias, nas partidas,
Foi a música maravilhosa dos meus ouvidos de criança.
Ó transatlânticos com bandeiras enfeitadas,
Não é verdade que viestes para levar-me?
Publicado no livro Um Homem na Multidão (1926). In: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960.
Todo poema é uma verdadeira ode à cidade portuária aonde o poeta nasceu. O poema Santos é repleto de referências da infância de Ribeiro Couto próxima ao cais, da paisagem marítima e dos morros da cidade, da padroeira, dos armazéns, dos transatlânticos...
Quintana também tem um belíssimo poema dedicado à cidade que adotou para viver e para a qual ele sempre mostrou um olhar generoso: Porto Alegre. Vamos conhecê-lo:
O mapa
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(E nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Ha tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Ha tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E ha uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...
(QUINTANA, Mario.
Para Quintana, que conheceu a cidade como seu próprio corpo (os diferentes matizes das pinturas dos prédios as dores das ruas, mesmo das que desconhece...), Porto Alegre é tão querida que, em O mapa ele expressa seu desejo de nela ser enterrado.
Em 1987, Quintana concedeu uma entrevista ao também poeta e gaúcho de Jaboatão, Lau Siqueira, onde reafirma seu amor por Porto Alegre. Quando questionado sobre as mudanças da cidade ao longo dos 80 anos vividos pelo poeta, ele respondeu:
"Olha, naturalmente o que mudou foi a arquitetura, não é? Eu vejo sempre uma cidade dentro da outra e lembro aquela cidade antiga. Mas pra me lembrar dela eu tenho que fechar os olhos (risos). Porto Alegre, antigamente, era muito mais calma. Não havia tantos assaltos, tanta violência... eu nasci no tempo das vacas gordas. Antes, o leiteiro deixava o leite na porta de casa e ninguém roubava. Hoje roubam até as galinhas dos despachos. Os tempos mudaram, os costumes, mas a vida continua a mesma. Eu não sou como aqueles velhos que dizem: "Ah, os bons velhos tempos..." eu tenho vontade de dizer para eles: "Olha seu moço... seu moço, não, seu velho. Os tempos são sempre bons, o senhor é que não presta mais... (risos)."
Lau Siqueira entrevista Mário Quintana, Jornal O Norte, 25 de janeiro de 1987.
Ambos os poemas permitem trabalhar com as crianças os marcos da sua localidade numa perspectiva histórica em relação: às edificações e/ou monumentos, por exemplo. Permitem também a aproximação de conceitos geográficos importantes: noções de clima, vegetação e relevo que caracterizam a paisagem da cidade onde vivem.
Se houver poetas locais que se disponham a conversar com as crianças, não deixe de aproveitar esta chance. Reserve um dia para o encontro para que ele fale de sua poesia, suas motivações e, claro, para que declame alguns de seus poemas.
Ler, ouvir, declamar um poema e apreciá-lo com toda a intensidade possível são ações de humanização, sensibilização diante da arte. Assim, no trabalho de leitura e apreciação dos poemas destacados como nos demais que você selecionar para apresentar à turma, declame-os, valorizando seu ritmo e sonoridade. Capriche nas pausas, nas ênfases, enfim, dê dramaticidade à sua leitura, destacando as metáforas e as surpresas prazerosas proporcionadas por esses textos literários.
Converse com as crianças sobre as suas sensações diante do que leram e ouviram.
Se necessário, esclareça algumas passagens dessas belas declarações de amor dos poetas às cidades em que viveram ou nasceram, assim como sobre as temáticas tratadas nos demais poemas selecionados para o trabalho com a turma.
Estimule os alunos a procurarem no dicionário o significado das palavras que desconhecem e discuta com eles quais, entre os diferentes significados encontrados, são mais adequados ao contexto.
No poema de Quintana, por exemplo, o termo anatomia, tem significados na Biologia, na Medicina etc. e, em sentido figurado, significa o exame detalhado da forma, da estrutura dos elementos que compõe algo. Assim, o poeta dispõe-se a observar o mapa de Porto Alegre minuciosamente, para descobrir os detalhes da cidade. O significado mais comum da palavra nuança se aplica à idéia de gradação no contexto do poema, significa tonalidade, diferença sutil entre as cores (o poeta enxerga os diferentes contrastes, os diferentes matizes das paredes das edificações da cidade).
Outra atividade interessante é pedir que as crianças ilustrem os poemas. Estimule o uso de diferentes materiais e técnicas.
Os poemas também podem ser musicados a partir de uma melodia baseada em músicas conhecidas ou não. Outra dica para o trabalho com o ritmo dado pelos poetas às suas composições é fazer uso de instrumentos de percussão na leitura em voz alta dos poemas. Se você ou outro/a professor/a de sua equipe tiverem conhecimento de linguagem musical, podem registrar os resultados em partitura caso contrário, utilize um gravador/fita cassete. Você certamente irá se surpreender com os resultados.
Você também pode apresentar acrósticos para as crianças e realizar uma oficina de produção deste tipo de poema com temáticas relacionadas ao cotidiano infantil, por exemplo:
Beijo doce
Alma clara
Lambo os lábios
Amo a bala!
(Olegário Schmitt)
Pus meu sonho
Inacessível
Preso a um fio
Alto voava
(Olegário Schmitt)
Bom mesmo é
Inventar as rodas
Com o arco-íris
Iluminar com
Cores da
Lua a direção
Enquanto a palavra
Também pede
Assento no chão
(Lau Siqueira)
Outro trabalho interessante e que funciona bastante com as crianças são as paráfrases ou 'empréstimos poéticos'.
"(...) Para facilitar a criação de poemas, para as crianças, é produtivo convidá-las a fazer empréstimos da poesia, isto é, tomar por base algum poema que conheçam e recriá-lo, respeitando sua estrutura, ritmo e rima, mas modificando seu conteúdo. Para a realização dessa atividade, sugerimos os seguintes passos:
leia poesias para seus alunos com freqüência, ou faça-os ouvir gravações de diferentes autores
organize sessões de leitura e escrita de poemas, durante as quais os alunos escolhem aqueles de que mais gostam e depois os copiam e lêem ou recitam para seus colegas
peça-lhes que se preparem para ler ou para recitar, lendo várias vezes os poemas escolhidos
convide-os para assistir a apresentações de poesias e entrevistar um poetista ou poeta, quando se apresentar a oportunidade
mostre um modelo de empréstimo poético ..."
CONDEMARÍN, Mabel GALDAMES, Viviana MEDINA, Alejandra. Oficina de linguagem: módulos para desenvolver a linguagem oral e escrita. São Paulo: Moderna, 1997.
Partes do poema Santos ou do poema O Mapa podem ser ótimos pontos de partida para a atividade de empréstimos poéticos, pois possibilitam que as crianças apropriem-se da idéia central desses poemas (a descrição da cidade do ponto de vista pessoal do poeta) e possam elas próprias também 'desenharem' a sua cidade na forma de poesia.
Nas séries iniciais como nos sugere Condemarín, Galdames e Medina, um procedimento interessante é escolher um poema, manter sua estrutura e suprimir alguns versos ou palavras para que as crianças completem com aquilo que considerem mais interessante.
Em geral, as crianças possuem uma liberdade criadora e uma capacidade de lidar com palavras e idéias que muitos adultos perdem com a aprendizagem formal da língua. Assim, se elas forem sensibilizadas quanto ao ritmo, sonoridade e surpresas de um bom texto poético e sua criatividade não for cerceada, elas costumam nos surpreender com belos textos.
A escolha dos poemas para as paráfrases deve ser bem criteriosa, pautada em produções que as crianças conheceram ao longo do projeto e passaram a apreciar e, cuja temática possibilite a elas expressarem suas próprias referências.
Para encerrar, sempre reserve tempo para que as crianças apreciem suas releituras, permitindo que declamem seus empréstimos poéticos.
Bom trabalho!
5. Para saber mais:
Algumas obras de Mário Quintana:
QUINTANA, Mário. Lili inventa o mundo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997.
___________. Nariz de vidro. São Paulo: Moderna, 1984.
___________. O sapo amarelo. Porto Alegre: Mercado Aberto.
___________. Pé de pilão. 5° edição. São Paulo: Ática, 1995.
Alguns sites sobre poesias e poetas
Site do Jornal de Poesia, o maior site literário em Língua Portuguesa http://www.secrel.com.br/Jpoesia/poesia.html
Um projeto com poesia bem interessante: http://www.pmf.sc.gov.br/ebm_batistapereira/webquest-MariaLucia/introducao.html
Site com seleção de poemas de Quintana: http://quintanares.blogspot.com/
Site da Universidade de Campinas do IEL com poesias e muitos dados sobre a literatura infantil produzida em fins do século XIX e primeira década do século XX http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/LiteraturaInfantil/index.htm
Longa e rica matéria sobre a vida e obra de Ribeiro Couto: http://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult006.htm
Uma boa biblioteca virtual com artigos e produções literárias brasileiras: http://www.usinadeletras.com.br
Enciclopédia virtual da Literatura Brasileira:
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_lit/index.cfm
Alguns livros de e sobre poesia infantil e o uso dela em sala de aula:
Antologia de poesia brasileira para crianças. Introdução e seleção: Celia Ruiz Ibáñez Ilustrações de Teo Puebla, São Paulo: Girassol, s/d.
AVERBUCK, Ligia Morrone. A poesia e a escola. In: Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
BORDINI, Maria da Glória. Poesia infantil. São Paulo: Ática, 1991.
CONDEMARÍN, Mabel GALDAMES, Viviana MEDINA, Alejandra. Oficina de linguagem: módulos para desenvolver a linguagem oral e escrita. São Paulo: Moderna, 1997.
MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
OLIVEIRA, Maria da Conceição C. Paratodos História (Livro do Professor), São Paulo: Scipione, 2004, especialmente volume 1 e 3.